segunda-feira, julho 21, 2008

Carta a Plínio Marcos.

São Paulo, 19 de novembro de 1999.


Meu pai morreu. Todo pai morre. Agora estou aqui pensando: o que foi que meu pai me deixou? Apartamento? Não. Carro? Nem uma bicicleta. Dinheiro? Ele não conseguia pagar nem as próprias contas. Mas pagava a dos filhos. Roupas? Só um chinelo velho, mas meu pé é maior. Sem testamento, sem herança, sem nada? As peças. As peças de teatro? Meu pai era escritor de teatro. Tem gente que escreve peça pra ganhar dinheiro. Não, meu pai não. Não ganhou muito dinheiro com teatro. O que ganhou, gastou. Meu pai não era um bom administrador. Era um "maldito", diziam, um "marginal", mas não era bandido. Por que ele era maldito, afinal? Por que não escreveu peça pra ganhar dinheiro? "Ninguém tem direito de pedir a um artista que não seja subversivo."

Meu pai fez novela, fez Beto Rockfeller. Mas Beto Rockfeller não conta, Beto Rockfeller era A novela, tinha a cara dele, era revolucionária. Ele ganhou um dinheiro, me comprou um tênis, uma guitarra, um... Mas A novela era na Tupi. A Tupi faliu. Meu pai foi fazer novela na Rede Globo. Meu pai escreveu no jornal "A Última Hora" que a Globo botou a Sônia Braga dois meses tomando sol pra ficar escura, em vez de chamar uma mulata pra fazer "Gabriela". A Globo não gostou. Os "poderosos" da Rede Globo não gostaram. Fizeram ameaças, juraram de morte. Em fim, a Globo não dava mais. Mas enquanto os "poderosos" iam dizendo: Não! Não! Não! Ele ia ganhando o respeito dos humildes de coração, um "povo que berra da geral sem nunca influir no resultado", um povo fudido, os marginais, as putas, um povo que não aparecia na T.V. O povo dele era entre outros, os sambistas, não esses de agora, de terno Armani, cercados de loiras recauchutadas, mas, os sambistas das escolas de samba de São Paulo. Os sambistas marginalizados, os que nunca gravaram CD...

Uma vez o meu pai tava com uma dívida muito grande, tava com dificuldade de pagar as prestações de um apartamento que ele comprou pra gente. Daí um belo dia a Ford ligou pra ele, convidando pra fazer um comercial. Era uma puta grana, dava pra pagar as dívidas e ficar bem tranqüilo por uns tempos. Meu pai não fazia comercial. Foi vender livro na rua. Nas portas dos teatros, nas portas das faculdades, nos bares. Foi vender livro na porta de teatros aonde se apresentavam artistas piores do que ele. Ele mesmo editava os livros, ele mesmo ia vender. E podia? Não. Não podia. Várias vezes ele foi expulso pelo "rapa" como um camelô comum. E ele chorava? "Perseguido, o caralho! Eu não sou nenhum mosca-morta. Eu fiz por merecer. Fui uma pessoa que aproveitou bem a fama. Eu apedrejei carro de governador, quebrei vidraça de Banco. Foi uma farra. Não teve mau tempo."
Tinha. Tinha mau tempo, mas ele não reclamava, eu nunca ouvi o meu pai reclamando da vida. Eu nunca ouvi o cara dizer que a vida tava difícil, ou que era "foda". Não. Ele só reclamava das injustiças. Ele berrava contra as injustiças, os preconceitos, a apatia.

Meu pai é o Plínio Marcos, porra! Bela merda, tem gente que nunca ouviu falar. Pra muitos era só um fudido que não deu certo na vida, andando feito mendigo pelo centro da cidade. Já morreu. Não era melhor do que ninguém. (Não?) .

Meu pai não me deixou apartamento, carro, dinheiro, bicicleta. Nem o chinelo dele me serve. Eu tive e tenho que ganhar o meu próprio dinheiro. E de tudo, isso era o que eu mais queria era ter dito:

"Pai, você não me deixou nada que se possa enxergar. Nem carro, nem apartamento, nem bicicleta, nem chinelo. Me deixou a sua indignação, um pouco do seu temperamento, a lembrança de ver você acordando todo dia com uma puta força de vontade, com uma puta vontade de viver, sempre alegre, sempre fazendo piada das próprias desgraças, sempre dando tudo que ganhava pros filhos, sem nunca acumular porra nenhuma. Pai, eu preciso te contar, no seu velório foi muita gente, pai. No seu velório, estiveram os maiores artistas do país. Médicos, políticos, advogados, empresários, fãs, gente do povo, crianças e os sambistas. Os sambistas cantaram sambas em sua homenagem, pai. Suas mulheres, seus amigos, seus inimigos, todos nós, todos nós te aplaudimos quando o seu caixão foi colocado em cima do carro de bombeiro. Você foi cremado, pai. Seus amigos fizeram discursos emocionados, disseram: "Plínio Marcos, um grito de liberdade!" Nós jogamos suas cinzas no mar de Santos. Na ponta da praia, onde você passou sua infância. O Jabaquara, seu time, ficou na porta do pequeno estádio, uniformizado, com a mão no coração, vendo o cortejo passar. O povo na areia batia no surdo e entoava um canto mudo no crepúsculo santista e nós no barco deixávamos você escorrer pelos nossos dedos como se você nem tivesse existido. Eu ainda quis te achar no meio do mar, mas de repente já era só o mar. E você foi, como todo mundo vai. É isso aí, pai: tanta gente te amava. Você sabia?
Mas, e eu, pai? E eu? Será que eu vou ter a mesma fibra que você? Eu não gosto de viver como você gostava. Eu não tenho a sua coragem. "A poesia, a magia, a arte, as grandes sabedorias não podem habitar corações medrosos." Eu acho que eu vou me vender, pai, eu acho que eu já sou um vendido. Eu só queria ser essencial, essencial como você. É difícil. Eu reclamo. A vida tá uma bosta! Tá difícil de encontrar pessoas essenciais, pai. As pessoas só falam e pensam no que é supérfluo. Eu não tenho assunto. Eu me sinto sozinho. Eu não sei sobre o que escrever. O mundo tá se destruindo, tem muita gente fudida, tem muitas festas e muita fome. Que indecência, pai, que vergonha que eu sinto desse tempo que eu vivo. Eu sei que você não tem saco pra choramingo, pai, mas me deixa desabafar, pai, só hoje, me deixa te falar sobre o sonho dessa gente, você sabe, essa gente, os "homens-pregos", fixos no mesmo lugar. Essa gente quer ter carro, pai, casa com piscina, essa gente quer ser rica e famosa, essa gente quer ser musculosa e quer ter bunda, essa gente diz que acredita em Deus e fode ele, essa gente não quer ser essencial, pai, essa gente... essa é a minha gente, pai, às vezes eu me olho no espelho e me acho parecido com essa gente.

Me perdoa.

Um beijo do seu filho, Nado, que ainda usa o nome artístico que a gente inventou juntos: Leo Lama.





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Não, eu não tenho nenhum comentário dessa vez.

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