domingo, abril 18, 2010

Carpinejando

Quem pensa que está fora do amor entra. Quem pensa que está dentro sai. Ele engana sua força. Sobrepõe a memória dos sentimentos na memória dos fatos. É procurar cabelos para completar as mãos, é procurar o que não se viveu para contar. É esperar o sol aquecer o lado ileso da cama. É não apagar direito a ausência, a letra, o cheiro. É insistir com respostas sem as perguntas. É podar o arbusto de água. É pão ruivo antes do mel. É idioma acumulado nas calhas. Não há descrição fiel que o possa explicar. Adiar o amor ainda é cumpri-lo. Fingir que não se sente é exercê-lo. Desdenhar é elogiar. Ofender é trocar palavras. Odiar é desesperar o atraso. O amor devora os sobreviventes. Não lembra do pente, da navalha, da tesoura de unhas, do jornal, do abajur. O amor não lembra do que precisa. Amor é não precisar de nada. É precisar do que acontece depois do nada, ainda que não aconteça. A fraqueza é força física. O endereço é genealogia. O amor confunde para se chegar ao mistério. Embaralha para não se ouvir. Perde-se no próprio amor a capacidade de amar. Quanto mais violento o primeiro amor, mais difícil será o segundo amor. Quanto mais violento o último amor, mais calmo é o primeiro amor. As frutas postas na mesa não estão à espera da fome, ainda estão à espera da árvore. A fome é uma árvore que cresce deitada e arranca o telhado do corpo. Amor é comer a fruta do chão. O chão da fruta. O amor queima os papéis, os compromissos, os telefones onde havia nomes. O amor não se demora em versos, se demora no assobio do que poderia ser um verso. O amor é uma amizade que não foi compreendida, uma lealdade que foi quebrada; o amor é um desencontro por dentro.


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Um menino revirava o peixe com um galho, revidava, dissecava o peixe por todos os lados e gritava: Cadê o olho? Cadê o olho? Eu não sinto pena do que não fui capaz de viver. Não sinto pena. Falhar é também necessário. Não desejo me isentar de mim para enxergar. Eu quero enxergar comigo dentro. O menino resmungava escamas a procurar o olho que não morreu junto do peixe. O olho que não foi pescado. Cadê o olho? O olho deveria ser um Deus ou um pai ou uma mãe ou um carretel e suas barbatanas compridas. O olho não era o mar, mas sua aparência de musgo. O olho era o que o mar não via. Saber o que somos não amplia o espaço. Talvez até o diminua. A gente protege o que somos e recuamos. Quando se acaricia um rosto, se ergue a mão em um juramento distraído. O menino pensou que um cão levou o olho direito do peixe, não havia cão por perto. O menino se viu enganado e não poderia entender a expressão "olho morto de peixe" que o chamavam na escola. Eu não queria dizer nada para enfim dizer alguma coisa que não soubesse. Desejo me exigir sem a necessidade de palavras. Me amarro numa crença, num livro, numa música. Mas uma vida inventada não vale o susto de um engano. Um amor pode ser maior do que a própria fé no amor. O que fui não é uma fatalidade, mas uma escolha que não terminou. Cadê o olho? O que não é encontrado é o que mais vive.


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A Ana não guarda as cartas de amor.
Ela quer achá-las de repente. Em outro dia, em outra idade. Dentro de um livro, na gaveta, na bolsa.
A Ana se guarda para as cartas de amor.





Pois é, eu ainda tenho um excelente gosto literário.

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